segunda-feira, 1 de abril de 2013

Cheiros da Infância


Maria da Conceição Cação


Amarelo gema de ovo...

É domingo de Páscoa. O sol brilha intensamente no horizonte. Sigo por caminhos estreitos que serpenteiam pelos olivais. Do verde denso do centeio que rodeia as imponentes oliveiras centenárias emergem, espontâneas e vigorosas, graciosas flores rubras. Mais adiante, impera o amarelo em caprichosos matizes: amarelo gema de ovo das flores exuberantes do tremoço; amarelo canário das azedas; amarelo e branco, ovo estrelado, das camomilas que, humildes, atapetam os valados… Aventuro-me agora por carreirinhos pedregosos. Ai os meus sapatos de verniz! As flores brancas dos carrapiteiros acariciam-me os cabelos, brincam com as minhas tranças; o perfume das madressilvas impregna-me as roupas novas. Indiferente à lama e à distância, deixo-me inebriar pelo aroma fresco e festivo da primavera.
Lá está acasa dos avós

Lá está a casa dos avós. O cheirinho rescendente da comida que já nos espera a um canto da lareira. Que bom o arroz de pato servido na louça do cavalinho - o cheiro da tradição … E da História vivida e recontada pelo avô – a monarquia, a implantação da república, a revolta de Paiva Couceiro… Cheiros múltiplos a folar, a naftalina das colchas antigas e vistosas que tapam a nudez envergonhada das velhas portas de madeira carcomida. “Cristo ressuscitou. Aleluia!”. Cheiro suave a alecrim, a água benta. Beijo a cruz, recebo o perfume aveludado da bela rosa vermelha

A vindima

Há também a safra da azeitona. A transformação mágica da massa negra no líquido dourado. O cheiro verde do azeite novo mistura-se harmoniosamente com o cheiro guloso da couve cozida com bacalhau.
A matança do porco. Cheiros fortes, opostos. Reúne-se a família, os amigos. Preparam-se os instrumentos de execução. Cheiro a pelo chamuscado, a sangue vermelhinho, a alho, a cravinho… Cheiro a sarrabulho, a pão… e a jogo de cartas ao serão.
O Natal. O cheiro a novo das roupas compradas na feira dos 24. Um cheiro místico a igreja, a presépio. Cheira a frio, a fumo que se evade da lareira acesa, a filhoses com canela e … a austeridade.


A vindima. O cheiro áspero das parras; o aroma doce das uvas a despedirem-se da videira; doce que se prolonga no mosto, que já fermenta no enorme tanque e que logo, logo, há de jorrar da torneira de metal, ainda cru, mas já com cor e cheiro varonis. E o cheiro vítreo e penetrante da aguardente que, em fio, desce por um boneco de madeira (qual Manneken Pis) e se afunda na jarra de barro vidrado
Não, não quero recordar o verão. O sol abrasador, o canto ominoso dos galos, o concerto monótono das cigarras trazem até mim um cheiro árido, desolador. É agosto. Vários dias a fio, após o almoço, com uma precisão matemática, uma violenta trovoada faz-se anunciar através dum leve ribombar. Aos poucos, as nuvens vão-se adensando, o céu assume uma cor ameaçadora, lembrando as trevas desencadeadas pelo último suspiro de Cristo na cruz; raios de fogo atravessam-no de lés a lés, logo seguidos de estrondos assustadores. 
Os meus pais parti~ram de madrugada
O mundo parece desabar sobre a minha cabeça, esmagada pelo terror. Os meus pais partiram de madrugada, só regressam à noite. Sinto o cheiro da saudade, da aflição, da morte, da morte deles assim, repetidamente, anunciada ao meu coração pequenino.


3 comentários:

  1. Afinal temos seis sentidos. Não estou a falar da intuição como sexto sentido, mas de seis sentidos mesmo. Este texto prova a minha teoria. Para além dos cinco que os compêndios consagram, temos também o sentido da memória da infância. Ainda algum António Damásio provará que a memória dos nossos tempos de meninos estava aparelhada para armazenar a sustentabilidade da nossa felicidade futura.
    Depois, em adulto, quanto mais se deixa em liberdade a memória de menino, mais ela se enriquece e nos prende e traz felicidade a todos.
    Que bela sinestesia de cheiros, cores, formas, texturas e gostos este texto oferece.
    Tal como na vida, porque é vida, nem o som aterrador do trovão falta.

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  2. Não sei se viu ontem uma noticia que andou por aí a circular sobre o Google e um novo programa que nos permitiriam saborear os cheiros através do computador:claro que se tratava do dia 1 de Abril. Mas estou sinceramente a pensar propôr-lhes a leitura deste seu trabalho. Eu, por mim senti-me a saborear todos os cheiros, as cores, os sabores que descreve tão bem e com um pormenor, uma força que quase nos fazem saltar de dentro de casa e ir á procura do nosso sol que, este ano, está dificil de ficar. Lindo, São, gostei imenso!

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  3. Uma forma muito bonita de viver as recordações da infância. E, se a beleza não lhe chegasse, "os cheiros" polvilham um texto rico de imagens e realidades.

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