quarta-feira, 17 de abril de 2013

Enfim, só!

Maria Conceição Cação
Ainda de olhos fechados, tacteio o lugar ao meu lado. Vazio. Desperto. A esta hora, ele já se encontra a longa distância. E onde estão as vozes chilreadas dos pequenos, que, mais madrugadoras que o sol, inundavam a casa de alegria? Longe, bem longe. À minha volta, silêncio, apenas. Sinto-me a sufocar. Depressa, desço a escada e tento algum conforto no televisor. Não, já não é o Canal Panda. Experimento uma sensação agridoce. A partir de hoje, vou ver os meus programas preferidos, sem o zapping dele e as birras dos miúdos. Ah! E as minhas músicas esperam-me nos CDs trancados no armário. Reencontro-me comigo à mesa do pequeno-almoço. Regresso à minha dieta, nada de bolos, nas próximas duas semanas.
De divisão em divisão, vou avaliando os estragos: prateleiras sem livros, almofadas sem capas, impressora sem papel, portas sem chaves, … chão com muita areia, móveis cobertos de pó, muito pó. Lixo por toda a parte. Abandono e desconforto.

É preciso lavar, arrumar, aspirar, limpar, coser, consertar…
Mas hei-de também ler
Mas hei de também ler, ler muito, voltar aos meus livros durante longas horas. Enquanto devolvo os livros infantis à estante, vou passando os olhos pelos títulos que me espreitam, empoleirados nas outras prateleiras. Uma cascata de recordações começa a jorrar na minha memória. Esta casa, agora tão vazia, já conheceu dias muito animados, quando as visitas se sucediam, quase sem interrupção. Acho que já nem me consigo lembrar de Todos os Nomes. Um dos familiares mais assíduos era O Primo Basílio.



Paula
Chegava sempre ao Domingo à Tarde, quando regressava do Sul. Nunca trazia a filha, a Ana Paula, porque sabia que Aqui não há Lugar para Divorciadas. Vinha também com frequência A Filha do Capitão que, apesar de não acreditar n’ A Fórmula de Deus, costumava acompanhar-me à missa Em Memória da Albertina que Deus Haja. De quando em quando, aparecia também a minha tia Helena, que adorava contar histórias onde entravam Anjos e Demónios, tendo ordinariamente como cenário as Terras do Demo. Uma figura curiosa, esta minha tia! Já contava muitas décadas, tempos calmos, tempos atribulados, tempos de Guerra e Paz. Quando interrogada sobre O Segredo da sua longevidade, respondia que era o Amor sem Limites. Vinham também os amigos e os amigos dos amigos. Uma visita que nunca esqueci, foi a de Uma Família Inglesa, há muitos anos, creio que foi n’ O Ano da Morte de Ricardo Reis. Era uma família numerosa, aparentada com Os Fidalgos da Casa Mourisca. Quando os viu entrar, o meu avô desabafou com a minha avó “Tanta Gente, Mariana”.
Altino Tojal
A nossa empregada, essa ficava muito tensa por causa d’Os Putos. Ainda me parece ouvir a voz da minha Mãe, que primava pelas Boas Maneiras, lembrar-lhe “Sorri, Francisca”. Apesar de nascida nos Cus de Judas e habituada à Servidão Humana, esta rapariga gostava de gozar os seus momentos de tranquilidade e ler o seu Romance de Cordélia, sem ser perturbada por estas crianças, a quem ela chamava Cisnes Selvagens.
As memórias de tempos idos acentuam a minha melancolia. Droga de Vida! Sinto o peito dilacerado pelas garras da solidão. Pego num livro, ao acaso, sento-me, começo a ler.
À beira da loucura?
A protagonista, aprisionada, fita-me nos olhos, esbraceja, grita, implora a minha ajuda. Levanto-me, estendo-lhe os braços, mas… num ápice, tudo se esfuma. O eco devolve-me um grito lancinante. À beira da loucura? Doida não e não.

6 comentários:

  1. "avaliando os 'estragos'": muito mimo, muita cumplicidade e a vida num espanto de renovação! Depois um belo patchwork de livros a estender a ponte para novos "estragos".
    Belo e cheio de imaginação!



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  2. Adorei! Simplesmente fantástico! Quantos de nós ján não sentiram isto , mas descrevê-lo com nomes de obras literárias é...maravilhoso! Grande imaginação criatividade. Muito bom! parabéns pelo excelente texto.
    ( Fiquei contente porque não sendo uma grande leitora descobri que já li muita coisa...a maior parte dos livros aqui mencionados)

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  3. Sim, a São já nos habituou a ler textos muito belos. De certeza que vamos continuar a ver o seu lado criativo e imaginativo. É com muito orgulho e porque não dizê-lo aqui que faço parte dum grupo magnifico. Obrigada São.

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  4. Fechar a porta e assumir a revolução: quantas vezes pegamos nela e nos apressamos para que tudo volte àquele lugar específico que só nós sabemos. E depois que bem que sabe o silêncio feito de leituras revisitadas e de longas e vagarosas peregrinações pelos livros que se tornaram nossos cúmplices e companheiros de jornada. Encaixados perfeitamente como se de um puzzle se tratasse: quase me dava vontade de passar uma tarde a trocar consigo imagens e sensações que cada um deles desfibrilhou em mim.

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  5. Não me visitam, existem ao meu lado e "quase" vivem comigo. Sei, mesmo, o nome de muitos. Entretanto, acabo de ler este texto e sai: - que maravilha, bonito!Sinto que estou a "evoluir" (como que, ainda vá a tempo...), agora, dá-me muito prazer, oferecer um LIVRO às minhas netinhas.

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  6. Belo texto,São. Extraordinária imaginação,pondo os títulos dos diversos livros nos sitios exatos. Gostei tanto, deste texto; Parabéns.

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