quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Enfrentar as marés

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Viver ao sabor dos ventos, deixar-se levar pela maré, não ter os pés assentes na terra, pensar com a cabeça dos outros são atitudes que podem trazer algumas surpresas e desencantos ao longo da vida. A este respeito, variadíssimos autores têm feito correr muita tinta sobre a importância de se ter objectivos. A experiência de cada um tem-se encarregado de comprovar estas máximas. Recordo, a propósito, Orson Welles que afirmava ser a falta de objectivos mais importante do que a consumação deles. Possivelmente, já todos experimentaram como é efémero o prazer da realização pessoal, e, em contrapartida, como é desafiador o tempo em que nos entregamos à realização dos projectos. Conheci um homem, muito simples por sinal, que, até aos oitenta e cinco anos, fez da sua vida um campo de novidades. De tal forma que as últimas palavras que lhe votaram quando ele partiu se traduziram na expressão mais encantadora que ouvi a seu respeito: deixou-nos o homem dos projectos e que nos fique a vontade de o seguirmos.
...lutando com as armas de que se dispõe...
Vem isto a propósito do desespero, da insegurança, do desencanto, da inépcia e da desesperança que tantas vezes nos assolam. E, convenhamos, por mais fortes e resistentes que sejamos, há alturas em que o chão nos foge, como vulgarmente se diz. O momento actual favorece estes estados de alma, sabemos. Não nos faltam estudos que apontam soluções para a crise, as crises, pois de várias se trata – económica, social, cultural e, sobretudo, de valores. Os debates mostram-se na comunicação social, as reflexões deixam pistas e orientações, mas o certo é que, para muitos, as portas já estão fechadas. Para outros, há apenas espaço para a entrada de um pé que, sozinho, se deixa vencer pelo pontapé que assoma à soleira. Todavia, os salões continuam cheios: de oportunistas que impam de ignorância, de imberbes infantes que crescem à sombra de vaidades, de detentores de bolsas que, de tão cheias, rebentam pelo atilho. À porta, desamparados, estão os que esperam as migalhas que caem da mesa dos senhores!

Deambular sem tino em caminhos sem saída? Entregar-se, rendido, ou lutar afincadamente até que a justiça social faça jus do seu mister? Não se deixar levar pela maré, lutando com as armas de que se dispõe, parece-me ser um caminho possível. No meu caso, e neste meio, fazer com as palavras a ressonância do meu sentir. 

15/09/2013

MariaCacilda Marado ©2014,Aveiro,Portugal

6 comentários:

  1. Evoluir quer saudar a presença de Maria Cacilda Marado que nos enviou este trabalho para publicação e que honra com a sua presença e as suas sensatas palavras, fruto duma reflexão profunda face à sociedade dos nossos dias

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  2. Palavras serenas, de uma sensatez invejável a que muitos terão que se agarrar para evitar perder os remos do barco em que navegamos com vagas
    agitadas pela maldade e, dando o benefício da dúvida, pela arrogância e ignorância de quem tinha o dever de sondar caminhos de maior justiça social. Por vezes é necessário travar o ímpeto para recuperar alguma frieza de espírito que sustenha a raiva que nos galopa no pensamento. Parabéns à ilustre autora das pertinentes palavras com votos de melhores dias do novo ano para quem nos vier a ler

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  3. "Viver ao sabor dos ventos, deixar-se levar pela maré, não ter os pés assentes na terra, pensar com a cabeça dos outros" são conceitos, bem convenientes, a uma filosofia de vida que arreigou em todos nós o "eu cá vou indo caladinho", "a minha vida é só o trabalho", "eu cá não me meto em políticas". Foram quarenta e oito anos disto seguidos de mais quarenta de democracia inundada por corruptos que, se em alguma coisa falhou, foi exactamente na falta da revolução cultural tão necessária a um povo alimentado de obscurantismo.Os objectivos com vista ao desenvolvimento de projectos válidos e consequentes foram sucessivamente subvertidos por "inteligentes oportunistas" a que hoje chamamos gatunos. Continuamos a viver a democracia "só de alguns" "com a cabeça entre as orelhas". O realismo bem explícito da excelente autora concretiza e demonstra a enorme força da palavra.

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  4. "Os salões continuam cheios: de oportunistas..." Este é o retrato da sociedade que cada vez se rege mais por valores incompatíveis com a dignidade humana. Obcecada pelo ter, pontapeia ou esmaga os que teimam em dizer não ao oportunismo, à corrupção, ao desrespeito pelos outros... É a sociedade que pare os políticos que temos e que nos (des)governam. Fatalidade? Acredito que não. É preciso que se ergam as vozes discordantes e que cada vez haja mais pés ousados, aguerridos, a avançar, congregados por um novo projeto - um novo rumo para este povo.
    Obrigada, Cacilda. O realismo e a força das tuas palavras vão, por certo, contribuir para desinstalar o desânimo e a inação.

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  5. "Enfrentar as marés"com os olhos desta escritora é uma lufada de ar fresco na muro de lamentações que nos vem seguindo nos tempos de imobilismo que todos - uns mais que outros - andamos a viver.Mas todos sabemos que ainda podemos continuar a sonhar e a construir "lutando com as armas de que se dispõe" como refere a autora.

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  6. Escutar o silêncio e ser capaz de intuir com que armas nos querem destruir... Esse é o nosso rumo marcado. O objetivo das máscaras já há muito está traçado

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