segunda-feira, 10 de março de 2014

O meu menino

Está frio, hoje! Este tempo anda esquisito: ora chove ou faz um calor sem limites. Mas hoje estou mesmo cansado: calcorreei quase toda a cidade e nada me agrada. Nem um sítio, nem um banco de praça, nem um vão de escada… Falta-me qualquer coisa, falta-me um calor que não é quente ou uma brisa que não é vento.
Que saudades daquele menino
Que saudades daquele menino: dava-me vontade voltar lá só para o ver, só para rir com o seu sorriso e brincar com as suas mãozitas. Éramos amigos, muito amigos mesmo. Quando ele nasceu eu era ainda muito pequenino mas percebi logo que tinha perdido o meu lugar no centro das atenções daquela família. Depressa, porém, compreendi que uma criança é um raio de sol que entra casa adentro. Eu também gostei de o ouvir chorar pela primeira vez. Eu também gostei de espreitar para o berço e ver as mãozitas dele, muito pequeninas, a agarrar o espaço e a abrirem-se e a fecharem-se como se o mundo coubesse dentro delas. Deu-me vontade de o abraçar e sem ninguém dar conta dei-lhe a minha mão e deixei-o brincar com ela. Devagarinho porque ele é muito pequenino e eu tive medo de o magoar.
Se vissem: quando eu chegava, olhava para ele, fazia-lhe umas caretas e, certo e sabido,
...aquela criança gostava de mim
deixava de chorar. Eles nem compreendiam o que se passava mas o que é verdade é que aquela criança gostava de mim. Podem crer: gostava mesmo! Assisti ao seu primeiro choro, à mudança da primeira fralda, ao vestir da primeira roupinha, ao primeiro brinquedo que fazia dlim-dlão… Era um bebé tão lindo! Depois começou a gatinhar pela casa fora e eu sempre ao seu lado arrastava-me pelo chão a fingir que andava mais devagar do que ele. Um dia sentou-se e foi uma festa: bateram-se palmas, cantaram-se as canções de que ele gostava mais e houve direito a sobremesa melhorada. Até eu usufrui da alegria geral e lá comi o que todos comeram e saltei como todas as crianças e com os adultos que fizeram de crianças e corri pela casa fora.

...as cócegas que me fez
Um dia subiu-me para as costas e as cócegas que me fez – nem imaginam o que tive de me dominar para não o deixar cair! Depois puxava-me as orelhas, apertava-me o nariz e metia as mãozinhas pequeninas na minha boca. Eu dava-lhe empurrões pequenitos, amparava-o quando parecia que ia a cair e desafiava-o para a brincadeira. Depois fazíamos corridas pela casa fora e… partíamos coisas. Aí começou a barafunda: eu era sempre o culpado e realmente era, mas distraía-me com o meu menino, ia contra uma cadeira, deitava um jarrão ao chão e fugia a esconder-me. Ele ia comigo e ficávamos, muito caladitos, debaixo da cama, ou corríamos para o vão da escada: partilhávamos guloseimas que ele ia trazendo da cozinha sem ninguém dar por isso e brincávamos de esconder as mãos e ele lá ia de novo às minhas cavalitas a desvendar o mundo que nos limitava a um espaço e a um tempo onde todos tinham o seu lugar.
Todos, menos eu que estava a ficar demasiado grande para viver num apartamento. Um dia ouvi-os a comentar que tinham de decidir o que me haviam de fazer. Fiquei triste: eu julgava que fazia parte daquela família e comecei a andar pelos cantos sem saber o que fazer. O meu amigo, o menino, que tinha crescido comigo estava longe de pensar no que eles estavam a preparar e o que mais me custou foi que nem nos deram tempo para nos despedirmos. Um dia meteram-me num carro, andaram durante muito, muito tempo e eu sem perceber o que eles queriam de mim. Até estava a gostar de ver os campos cheios de flores vermelhas, amarelas, azuis, violetas. Até estava a gostar de ouvir o canto dos pássaros na copa das árvores que floresciam em dias azuis de sol brilhante e dum calorzinho que se entranhava no corpo e sabia bem.
De repente parámos e saímos do carro: havia por ali perto um rio porque eu ouvia a água a
Nem tive tempo para pensar
correr por entre as folhas das árvores caídas no chão. E a água gorgolejava, atravessando pedras e galgando montes – era uma corrente fresca num dia de calor! Nem tive tempo para pensar: se o meu menino estivesse ali tomávamos banho naquelas águas refrescantes. Mas ele não estava lá
- nem sei porque não estava, ou melhor, não sabia!
Num instante o carro rodou e eu fiquei para ali, sozinho, sem saber que sítio era aquele, sem saber para onde ir, sem querer sair dali, sem querer acreditar no que estava a acontecer. O rio deixou de emanar frescura e o sol pareceu ter-se escondido, quem sabe, no vão da escada como eu e o meu menino fazíamos em dias de tempestade doméstica.
Podia ter voltado para casa – eles não acreditavam que eu fosse capaz de o fazer mas eu sei que podia! Mas eu soube também, ou melhor, eu percebi naquele momento que não me queriam naquela casa e não voltei. Naquele dia fiquei por lá, apreciando a liberdade de poder correr sem limite de espaço e descansar sem limite de tempo, de poder fazer o que queria sem ninguém a demarcar o meu caminho e voltar para trás quando me apetecesse. E de dizer: faço porque me apetece e não faço porque não quero!
...dos beijos do meu menino
À noite senti falta do meu canto, do local onde dormia, dos beijos do meu menino e dos abraços – a falta que me fizeram os abraços dele! Dei por mim a tentar esconder uma lágrima que teimava em saltar-me dos olhos. Depois deitei-me por ali e chorei, chorei em torrentes sem conseguir parar as lágrimas, sem conseguir sufocar os soluços que se entrecruzavam no meu peito e me arrastavam para uma noite escura em que nem as estrelas iluminavam o céu. Até que adormeci e dormi profundamente envolto naquela mágoa que não era a de ter ficado sem casa – era uma mágoa profunda de quem foi abandonado porque estava a mais.
Durante algum tempo arrastei-me por entre a folhagem e fiquei por ali sem saber que fazer, sem querer fazer nada, à espera nem sabia de quê, nem de quem. O vazio tinha-se instalado e eu teimava em não querer sair dele! Num momento, porém, fez-se luz: quem sabe quantos de nós não estão assim sozinhos como eu, quem sabe quantos de nós se não sentem abandonados, excluídos, desprezados pelos seus ou por quem deles se serviu para sempre?
E parti à descoberta do que me faltava: um companheiro para a vida e para a travessia que
um companheiro para a vida
se avizinhava. Não, eu não queria desistir de viver, eu tinha muito ainda para descobrir e nada melhor do que esta minha nova liberdade para conquistar o mundo e o que o envolvia.
Pus-me a caminho e depressa cheguei à cidade grande onde a confusão abunda e a pressa é um caminho exacto para chegar ao rumo não desejado. Confesso que nada disto me agrada mas agora tinha à minha frente uma vida nova para descobrir e um rumo novo para desvendar. Tanta gente e tanto ruido, tanto silêncio esventrado e tanto grito sufocado: aquela gente não era feliz. Nem eu: há dias sem ter de comer, sem um espaço para dormir, sem um cobertor para me dar calor! Anoitecia e eu continuava a palmilhar a cidade dos homens e as ruas, encruzilhadas de gente que se arrasta penosamente, sem um sorriso, sem uma gargalhada, sem um choro, sem um pranto!
Homens partilhando cartões para se abrigarem do frio e restos de comida para saciarem uma fome que quase lhes suga a parca estatura que os vai mantendo de pé. Caído, de lado, sem força já para se levantar encontrei um ser sem esperança, enrolado sobre si mesmo, tiritando de frio e tremendo de solidão. Empurrei-o com uma das minhas mãos e ouvi-o dizer:
- Não tenho nada aqui… já não há nada para mim quanto mais para te dar!
Se o meu menino estivesse ali...
Recordei o meu menino e as vezes que debicávamos um doce em conjunto ou um pedaço de pão que havia sobrado do jantar. Alguns com tanto e tantos outros sem nada… Se o meu menino estivesse ali havia de encontrar alguma coisa para comermos juntos!
Saltei para dentro de um caixote do lixo e encontrei restos da mesa do meu menino: tanta coisa boa deitada fora! Uma perna de frango, um tomate quase inteiro, um pão meio acabado, um pacote de batatas fritas, um sumo quase cheio… era demais para levar tudo de uma vez só! Até uma manta meia ratada por lá permanecia. Tinha encontrado jantar para mim e para o homem que permanecia enrolado sobre si mesmo abrigando-se da chuva com o seu próprio corpo.
Após várias viagens consegui vê-lo sentar-se, comer deglutindo pedacinho a pedacinho aquele manjar de rico que o lixo guardara e partilhar com ele as migalhas das mesas fartas que os filhos da solidão sabem deitar fora.
eu passei o ser o menino dele
- Come, amigo, isto não é tudo para mim! Se não fosses tu hoje não arranjava nada! E depois se quiseres ajeitamo-nos aqui os dois: sabes, se ficarmos juntos, temos menos frio e até a geada é mais fácil de suportar.
Corri a buscar a tal manta ratada que permanecia no caixote do lixo. O que se pode arranjar num caixote de lixo – ninguém consegue imaginar! Só indo lá dentro e procurando e saindo a cheirar mal e a saber a sujo!
- Também arranjaste uma manta?! Nem me pareces muito faminto mas que estás sozinho como eu estás, disso tenho a certeza. Chega-te para aqui: vamos enroscar-nos um no outro, assim sentimos menos o frio e o calor de um passa para o outro. Hi! menino, cheiras tão mal – é do lixo! Deixa lá – nada que um bom banho de praia não possa lavar!

Só então percebi: ele não era o meu menino, mas eu passei a ser o menino dele!

Albertina Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

7 comentários:

  1. que delícia de texto, pela criatividade da situação narrada e, principalmente, pelo mundo de sentimentos de um "fiel amigo", sempre disponível.
    apreciei -o também pela técnica de escrita usada na transmissão da mensagem ( de amor pelos outros).

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  2. Encontros e desencontros que ouvimos, vemos e vivemos no dia-a-dia. O casal tão amigo de um cão que mimou seu filhote que foi capaz de separar aquela criança do animal e vice-versa. Não contentes com isso, abandonaram, lá longe, um animal que praticou o crime de crescer... A capacidade de quem nada tem - sem abrigo - para ser solidário com um simples cão que dele se abeirou e vice-versa. E se aquele casal entrosasse com ambos os vice-versa... Um belo retrato da nossa sociedade tão evoluída.

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  3. O menino pega-nos, nós pegamos o menino! E depois as injustiças dos homens vão-se enroscar uma na outra, para sentirem menos frio que teima em não deixar o coração que aqueceu com esta prosa tão fluente e cadenciada!

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  4. "ele não era o meu menino, mas eu passei a ser o menino dele". Rejeitado por gente ingrata e insensível, encontrou no coração daquele homem despojado de bens materiais o afeto que considerava perdido. E novamente a troca de carinho, um dar e receber, a reacender a esperança e a devolver sentido à vida.

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  5. Gostei tanto deste texto. Como foi rejeitado por aqueles por quem tinha tanto carinho, logo se dedicou a alguém que tanto precisava dele.

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  6. que lindo texto ..... a lagrimita teimava em cair..... <3 alice

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