quinta-feira, 10 de abril de 2014

Havia que decidir

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Havia sido educada com princípios. Decisão tomada era para ser acatada até à sua concretização plena. Os valores morais que a enformavam eram de uma rigidez e pureza marmórea, que apenas admitia o suave retoque, tendo como alvo atingir o cume da perfeição, sem que pudesse colidir com a intrínseca natureza das coisas.
Valores morais 
O que apreendera nos livros do sistema escolar, era uma verdade dogmática. Quem escreveu aqueles textos é porque estava seguro nos princípios definidos e estava autorizado a proclamá-los porque sabia magistralmente do que falava.
As relações cívicas com quaisquer pessoas, conhecidos ou desconhecidos, exigiam sempre dela, ponderada reflexão e escrupuloso prurido, no seu contabilístico exercício de sopesar ou medir os prós e contras.
A frequência nos estudos universitários tinha sido assumida com determinação e rigor, na abertura ao conhecimento, com as conceções, expendidas nos livros, a ajustarem-se ou a acrescerem aos seus juízos de valor. A formação académica aditara-lhe uma sólida cultura, não obstante as filosóficas interrogações do seu ego em relação à sua origem e ao seu futuro.
Aceitava-se como mulher com sorte, o que exibia entre as amigas e companheiras de curso.
Aceitava-se como mulher com sorte
Após o seu mestrado, ao abrigo do programa Erasmus, em terra estrangeira, concorreu e obteve o lugar docente na escola da sua preferência.
A sua juventude despertou e começou a fazer exigências. O coração manifestava-se em desejos de preencher a lacuna que se abria, mas a razão coartava-lhe os impulsos constantes. A razão era como um freio na voracidade do sonho. A luta constante travava-se entre o dever e o ser. Tréguas não havia. Qual venceria?
A jovialidade do Heitor, a sensatez cultural do seu humor e a sua inteligência, enobreciam a boa figura física de um companheiro de escol.

Ela estudou-lhe o carater, triturando todos os items aparentes e hipotéticos da sua personalidade, avaliando-o como homem sem interesse pessoal.
O ruminar da relação não foi tarefa fácil. Como na flor que se observasse, nele não havia espinhos que a magoassem mas o aroma extrovertido era de doçura discreta mas permanente.   
Quando acordou...
Sem que ela se apercebesse, o Heitor cativou-a, embalando-a na letargia de um sonho de casamento consumado. Quando acordou sentiu-se acorrentada num casamento que não ponderara como julgava dever fazer. Mas, o casamento estava realizado.
Ela e Heitor eram duas cabeças pensantes, com alicerces culturais muito próximos, com princípios orientadores da ação muito bem definidos, não obstante algumas particularidades pessoais. Enredados no mesmo objetivo, agiam de modo a construir, dia após dia, pedra com pedra, o edifício da felicidade do outro.
Os passos eram programados e executados na mesma direção.
Um dia o exame médico revelou a infertilidade do Heitor.
E o fosso abriu-se. Ela caía constantemente na atribuição, a si, de culpa por não ter exigido
E o fosso abriu-se.
previamente ao casamento o exame médico.
Essa imputação passou a triturar-lhe o pensamento.
E depois veio a pergunta: manter um casamento assim? Sem filhos? Por que não a inseminação artificial? E os seus princípios morais?
Poderia ou deveria ultrapassar a falta de um filho com a sublimação de outros motivos? Ou a sua vontade de procriar, de se reproduzir, era insuperável?
A luta interior passou a tomá-la dia e noite. Uma onda depressiva tomou-lhe o corpo e a alma. A frustração passou a ser um peso insuperável. Numa manhã acordou decidida. Determinada, soletrou ao marido como que a soltar amarras. Não aguento mais. Heitor, quero divorciar-me.


J. Carreto Lages ©2014,Aveiro,Portugal

1 comentário:

  1. Estranhas formas de viver a vida num mundo em que a evolução científica nos ajuda a sedimentar o que é realmente um valor. Será que um conceito teórico que nos amarra a uma filosofia é mais moral do que a busca da felicidade? E será que essa busca se compadece com uma desistência de dialogar com o outro e decidir sem dar e receber? E valores morais são sempre valores religiosos ou os valores morais pertencem a um conjunto de indivíduos - a que deliberámos chamar sociedade - e foram acertados por acordo livre entre todos?
    Este texto sugere-me muitas questões e tem a virtude de nos pôr a pensar.

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