terça-feira, 4 de agosto de 2015

Vestida de andorinha

Elsa Borges 

Naquela noite nem dormira. Nunca a escuridão me incomodara tanto. Como desejara viver em liberdade, correndo pelos pastos floridos atrás das ovelhas e das cabras, acompanhada do Fiel que, de orelhas no ar, mal eu assobiava, parecia uma flecha a correr ao meu encontro. Viver assim para sempre. Sem pressas e sem ambições de vida de cidade.
Como ia sentir a falta de chapinhar no ribeiro, sacudindo a terra dos tamancos, quando ao cair da tarde regressava com o rebanho.
Havia também aquele amor escondido, no fundo do meu peito, calado e só meu, pelo filho do vizinho, que todas as manhãs, bem cedo, partia apascentando os seus animais. Os jogos que fazíamos, as corridas com os cães, em que o meu Fiel batia sempre o Malhado. E, sobretudo, havia aqueles doces momentos em que ele me oferecia ramos de flores apanhadas no monte e atados com nagalhos.
Não havia dúvida, estava mesmo de partida. Quando me levantei, topei logo na cesta de palha em que a minha mãe tinha metido meia dúzia de trapos, uns tamancos novos, um xaile e uma capa de burel, que havia de usar lá, para onde me mandavam, na companhia da minha tia.
Sabia que ia servir para a mesma casa em que, a irmã mais nova da minha mãe, tinha servido desde os doze anos.
...o lenço atado no queixo, a cesta
na mão...
– Ainda tens sorte – dizia-me minha mãe – A tua tia quando foi servir tinha menos dois anos do que tu. Não tinha lá ninguém conhecido. Comeu o pão que o diabo amassou, para chegar onde chegou. Tu também podes vir a ser uma senhora.
A minha mãe devia querer consolar-me. Mas esta era uma forma assustadora de o fazer. O que quereria dizer com “o pão que o diabo amassou”? Devia ser algo terrível!
Estava sentada no canto da mesa, com a malga das sopas, pensando que esta era a última vez que ali engolia o almoço. A minha garganta tapou, o que tinha na boca veio fora, quando a minha tia, já com o lenço atado no queixo, a sua cesta na mão, apareceu para me buscar.
– Anda rapariga, despacha-te – balbuciou ela numa voz tremida que revelava comoção e pena – Olha que a carreira está achegar. Nós não somos nenhumas fidalgas, ela não espera.
Levantei-me, tentei pegar nos meus trapos. As minhas pernas tremiam e foi quase ao empurrão que a minha mãe me pôs para fora de casa:
– Vai, cachopa, faz-te à vida, ou queres viver nesta miséria para sempre?

A viagem na carreira foi uma agonia. As curvas à volta da minha amada serrania, faziam-me rodopiar as entranhas provocando-me vómitos. Era tudo tenebroso.
Chegadas à cidade, já o sol perdera o seu brilho. Ou seria que cá não havia sol belo e brilhante como lá no cimo, naquele ponto que eu já não distinguia, mas sabia estar perdido naquela imensidão que se elevava e tocava as nuvens do céu?
De repente, achamo-nos em frente a um imponente portão de ferro verde. O batente,
O batente
uma cabeça de tigre polida, brilhava e rebrilhava, ostentando uma ameaçadora bocarra aberta, munida de presas, capazes de esgaçar mãos que batessem com a pesada argola. Também, de uma corda, pendia de uma sineta pelo lado de fora que eu, intimidada pela cabeça do felino, agarrei de imediato, quando a minha tia me mandou bater à porta. Ao som rouco e repetido da sineta, acudiu de imediato, um homem de cabelo tapado pelas abas de um chapéu de palha, arrastando uma alfaia agrícola que, para mim tinha aspeto ameaçador.
Carregava um cesto de formosas hortaliças que, logo ali, entregou à minha tia, tendo eu que transportar a sua própria cesta.
– Eh rapariga! Se maior é o dia, maior é a romaria. A patroa já está numa aflição. Estão, não tarda, as visitas para chegar e tu ainda nesses preparos – diz o homem que, como vim a saber, era quem tratava da horta e do jardim.
Então um mundo novo se abriu à minha frente. Nem sei quantos eram entre rapazes e raparigas. Reparei apenas nas suas roupas. Eu nunca assim tinha visto. Elas todas enfeitadas de rendas e bordados. Faziam lembrar as vestes da minha querida Nossa Senhora do Auxílio. Eles, de camisas de finos panos e de colarinhos desapertados, tinham um aspeto elegante mas informal. Estavam todos sentados à roda de uma enorme mesa, debaixo de uma pérgula de onde pendiam cheirosos cachos de glicínias lilases. Sobre a mesa uma merenda que mais parecia um banquete e me deixou de boca aberta. Percebi que numa cabeceira seria o pai e na outra seria a mãe, pela idade e pelo porte.  
Todos começaram a dar ordens:
– Oh rapariga traz água! Traz pão! Traz ….
E a minha cabeça andava à roda. Faltavam-me as minhas ovelhas, o meu cão, os meus prados verdejantes, o meu pastor. Faltava-me o ar. Fui ao sótão que me indicaram, sem ir, só o meu corpo tinha vida. Descarreguei as minhas tralhas e as da minha tia. Tive
Parecia uma andorinha que
             entrara numa casa fechada
que vestir uma roupa preta e um avental branco. Parecia uma andorinha que, por engano, entrara numa casa fechada. Sentia necessidade de bater as asas mas esbarrava sempre contra a parede.  
Assustada pela voz nervosa da minha tia que chamava por mim, precipitei-me pela escada abaixo. A voz vinha do fundo de um extenso corredor. Devia ser lá a cozinha. Corri na sua direção. A meio de caminho, senti que me puxavam as tranças. Olhei estarrecida e dei de caras com os olhos de um rapaz, mais velho do que eu, de certeza, e desatei a gritar:
– Largue-me por favor! Largue-me já! Vá pôr as mãos….
Nesse instante a minha tia assomou à porta e estendeu o dedo para me repreender. Dos meus olhos escorriam lágrimas que eu não conseguia parar. O rapaz ria na minha cara. Senti uma raiva crescer dentro de mim e, quando a minha tia me rebocou para a cozinha, eu estava completamente descontrolada.
– Ai minha desgraçada, então não sabes que eles são os teus patrões? Não sabes que tens que ser humilde e fazer de conta?
– Mas isto não é trabalhar tia. Isto é caçoar de nós. Não é justo. São patrões mas não são donos!
– E que sabes tu do que é justiça e da vida? Vais aprender à tua custa.
Calei. Calei porque achei que a minha tia também só era corpo. Não vivia dentro dela. Aquela mulher altaneira que, lá na nossa aldeia, quando de tempos a tempos nos visitava, parecia ser superior a todos, com modos muito modernos e finos, tinha desaparecido. Deu lugar a outra andorinha, vestida no seu traje preto e com o seu avental branco de renda, sob o qual o seu peito subia e descia, sintoma de um bater acelerado do coração. Se calhar durante o dia, tínhamos que deixar a alma no quarto, usar só o corpo e, de noite, voltaríamos a estar inteiras, quando cansadas e sonolentas dedilhássemos o terço, de contas gastas, mas que nos transportava às noites da nossa casa.   
Comecei a perceber o que era “o pão que o diabo amassou”. O meu era mais concretamente aquele demónio do filho mais velho, que me aparecia em qualquer canto, me puxava as tranças, desapertava o laço do avental, deixava cair o copo de água sobre a minha roupa, me empurrava com violência quando se sabia oculto de olhares e, pior do que tudo isso, sempre que podia, levantava a minha saia.
Todas as parvoíces e abusos com as criadas faziam rir os desmiolados dos irmãos, parecendo um bando de milhafres, em presença de um pássaro ferido. Todos ignoravam a nossa humilhação e os meus olhos rasos de água, que arrastavam consigo a minha confiança no ser humano.
No meu interior o ódio crescia. Eu procurava evitar toda a proximidade com aquele ser repugnante.
Os dias eram muito longos. Por vezes as festas dos senhores duravam pela noite fora. Nós, as criadas, tínhamos que esperar na cozinha que as luzes das festas se apagassem, para depois, na penumbra e na discrição, fazermos com que tudo voltasse ao lugar certo, para que no dia seguinte, tudo estivesse pronto para recomeçar.
Nos dias de festas, as nossas noites eram muito curtas. Mal tínhamos tempo de apagar a luz pois, era ainda lusco-fusco e já o trabalho chamava por nós.
O meu corpo, vazio de alma, parecia doente. A assombração do rapaz mais velho que me aparecia nos cantos mais improváveis, fazia com que eu tivesse medo até da minha própria sombra. Eu já não sabia sorrir. Ouvia, muitas vezes, dizer que a nova criada era meio sorumbática e desajeitada. Dentro de mim crescia um monstro que só desapareceria, no dia em que eu pudesse mostrar àquele imbecil, que ser gente não tem nada a ver com o sítio em que se nasce mas a forma como respeitamos os outros.
Naquela noite, enquanto a minha tia acabava de encerar o salão, eu subia a escada do sótão, com uma caneca de água, para continuar a engomar umas toalhas de linho, para usar no dia seguinte. Abria a porta do quarto, quando alguém me empurrou para dentro, violentamente. Não tive dúvida do que se tratava. A minha alma continuava fora do meu corpo, a minha mão estava próximo do ferro, ainda em brasa, à espera de ser utilizado. Rapidamente, segurei o ferro, estiquei o braço e gritei:
– Fora! Fora daqui, seu vagabundo! Se me tocares com um dedo passo-te a tromba
Passo-te a tromba a ferro
a ferro. 
O ar trocista e triunfante transformou-se num ar aterrado e atónito. Eu continuava a gritar e sentiam-se já passos pela escada acima. Agora era eu que o tinha encurralado e procurava impedi-lo de sair do quarto. Haviam de ver o que se tinha atrevido a fazer este menino de família fidalga. Parecia um macaco enjaulado a pular de lado para lado e, por fim, tentando saltar a janela do sótão, apesar da sua altura.
A mão forte do pai agarrou-o a tempo de evitar que se fosse estatelar na laje do jardim.
Eu pousei o ferro. Abri a minha cesta, recolhi os meus parcos haveres e decidi imediatamente que a rua era mais segura, mesmo de noite, do que uma casa em que havia pessoas assim. Amanhã, haveria de encontrar maneira de regressar à minha aldeia. Afinal eu já não era uma criança e o meu pastor, devia estar à minha espera como me havia prometido.
Via-me feliz a comer caldo com broa, todos os dias, onde pudesse ser pessoa. Tinha pena da minha tia que se habituara e conformara a viver a vida em duas categorias: vestida de andorinha sem alma, adornando a vida dos outros ou, poucas vezes, quando nos visitava, viver uma personagem garrida, numa roupagem mais vistosa, falando e agindo como se fosse uma mulher independente e superior.
São escolhas. Eu fiz a minha. Queria viver, viver plenamente com simplicidade, como uma andorinha em liberdade e não como andorinha aprisionada nas garras de homens que vivem como se fossem donos de outros homens.  


Elsa Borges ©2015,Aveiro,Portugal

2 comentários:

  1. O mundo das (des)igualdades, por opção! Retrato dos conformados e adaptados, normalmente, muito boas pessoas e, quase sempre, simpáticas, e dos inconformados, inadaptados, habitualmente, demasiado frontais, que lutam por aquilo em que acreditam, quase sempre, "desmancha prazeres". Todos diferentes, todos iguais... ou, demasiado iguais, se bem que muito diferentes? "São escolhas. Eu fiz a minha"

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  2. Um texto soberbo, Elsa. Esta é uma realidade de uma época que teve um tempo mas que, infelizmente, não está tão longe dos nossos dias. Com uma roupagem diferente, num espaço diverso, mas, na realidade, a exploração das mulheres e dos trabalhadores continua a ser uma realidade. Gostei muito da forma fluente, direta e livre como conseguiu expor a situação, gostei das imagens que utilizou, das expressões que empregou. Li-o dum fôlego, como quem saboreia uma fruta fresca e refrescante no meio da mediocridade. Obrigada Elsa por partilhar connosco um pouco de si.

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