segunda-feira, 7 de março de 2016

De flor se escreve Mulher

Albertina Vaz 

Um dia vou sair por aí, bem de madrugada, a colher as flores que brotam da terra esventrada, onde um pingo de chuva fez nascer uma pétala florida. E vou ficar espantada ao desvendar a menina, feita margarida (flor da inocência), que surge do nada e cresce sem dar por isso. E vou perceber que, um dia, ela se veste de anis e acredita numa promessa que caiu do céu, em dia de bonança. Depois, na asa de um pensamento, vou colher um amor-perfeito e a menina será mulher. Aí, vou correr, a pé, pela estrada deserta e descobrir que cada mulher se traja de açucenas, numa angústia de fim de tarde, quando a calma tem cheiros a alfazema e a vida a obriga a colher flores de alecrim que lhe asseguram a coragem premente, num tempo em que o trabalho faz escravos sem direitos nem leis.

Mulher romance, numa amurada, olhando a onda que se desfaz num quase nada, numa campânula feita admiração dos que a vêem e não perdoam o ciúme dum ciclâmen ou o poder duma coroa imperial. E vou cantar a felicidade e passear por entre as flores do campo que quebram a brisa e adoçam a mulher que corre, corre, sem dar por nada ou sem o querer.

Depois, agarra um gladíolo, como um encontro desejado e ergue-se orgulhosa num girassol que se alteia diante da desgraça e se renega quando a rosa branca, menina inocência, vagueia por aí vestindo-se de simplicidade e denudando-se diante da sua irmã a rosa vermelha, senhora paixão.

E lá vai, feita dente de leão, flor da vida, com uma dália ao peito, flor da delicadeza, e um amor ardente dum cravo branco, bem dentro do seu coração. Mulher desejo, mulher beleza, mulher música, mulher certeza e multidão. É nas esquinas, nos becos, no escuro da noite, à beira da estrada que vende o seu corpo e chora aterrada, feita flor de laranjeira, em dia cinzento, que o nevoeiro esmagou na mão. E aquela mágoa vai com ela, pela estrada fora, vai a correr e de mansinho, vai devagar, passa o caminho.

E de mulher se renova em mãe e aceita ser jasmim, flor da bondade sem fim. Colhe um crisântemo branco, flor da verdade e cobre-se com uma dália rosa, cheia de delicadeza. E dias há em que a tristeza a invade e corre a esconder-se num jacinto que se admira num riacho, ou num junquilho que se entrelaça sobre si mesmo e fica para ali a balbuciar violetas e a querer lealdades.

E mulher é mudança e medo e melancolia e mentira e verdade e acaso e afeição. E mulher é amante e rosa vermelha, paixão que germina numa angústia, numa ansiedade, numa ausência dum caminho que se cruza e se trança numa multidão feita criança, num coração ou numa crença duma felicidade que o futuro apetece ou quer.


Mulher que chora e já não cheira a flor, mulher que implora túlipas amarelas – esperanças de amor – e brisas de mil cores; e desejos, destinos e deveres e direitos. E mulher que implora quando a papoila, flor do sonho, a desperta e a empurra até à mimosa, flor da segurança, que lhe permuta revolução por razão, e liberdade por silêncios ou servidão.

E mulher é vento, é casa, é família, é certeza, é conquista e derrota, é cair e erguer-se, é distância e discórdia, é dor, é angústia, é existência, é uma camélia que se reconhece ou um amarílis que se orgulha, numa anémona que teimosamente persiste em viver de pé.
Mulher é subir em bicos de pés, até ao cume do êxito sabendo que, ao seu lado, a desigualdade continua a fazer-lhe frente e a dificultar-lhe a caminhada. E aí se enfurece: é força, é raiva, é fim, é génio e alquimia, é justiça e lágrima que cai, é noite e nascer do dia. Mas é também loucura e luta, é palavra, é livro que brota dum poema ou dum povo que acordou poesia. E, pobre heroína dum romance sem corda ronda a ironia e cheira a passado, numa paz sem perguntas ou numa prisão sem pressas.

E gere os seus filhos, e sorri ao futuro, e renasce em cada gargalhada, em cada esperança, em cada gesto, em cada história, em cada ilusão. Mulher guerreira que lança suas garras e fere quando a indiferença ou a injustiça lhes tocam ou atiram ao chão.

E transforma uma acácia amarela – um amor secreto –, numa adelfa – uma sedução -, e com uma camélia branca – flor da virtude -, surge esplendorosa transportando a flor-de- lis cuja mensagem é a esperança dum dia novo numa galáxia diferente.

E mulher é riso, é segredo, é sombra, é paraíso, é o que for preciso e ainda glicínia, flor da ternura, ou gerbera, flor da alegria, ou gerânio, senhor do capricho ou da devoção. E mulher é recordação, realidade, resposta sem sono, é sofrimento, é tempo, é tentação.

Por vezes perde a força: um sentimento que se esgota, uma saudade que se instala, um segredo que se cicia, um silêncio que chega e surge a solidão. Depois descobre-se numa palavra, revolta-se contra a violência, insurge-se contra a vontade de ficar quieta à espera do nada que há-de chegar.

É mulher, é mãe, empresária de sucesso que sobe a pulso, degrau a degrau, o caminho que acalenta quem, na sua sombra, dorme e sustenta o destino dos que sem lei navegam, em mares revoltos, e saem impunes duma dúvida, dum erro, dum fracasso que se faz medo e humilhação.


E reinventa-se sempre que a vida lhe pede mais, perde-se, procura-se e encontra-se sempre que se levanta, sempre que nasce um dia novo ou a noite desce sobre a cidade. 

Por tudo isto eu sei que não é mulher quem quer e ninguém escolhe ser mulher.

Albertina Vaz ©2016,Aveiro,Portugal

7 comentários:

  1. De Aldina Duarte recebemos o seguinte comentário:
    " Parabéns Albertina!...eu não escolhi,mas gosto de ser,cada vez mais!..."

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  2. De Fernanda Brito recebemos o seguinte comentário:
    "Maravilhoso!
    Parabéns Mulher!!!"

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  3. De Maria Silvia recemos o seguinte comentário:
    "Obrigada, TININHA, pela partilha de tão belo texto!!!! Comentei dentro do Blog, mas sem êxito.... pois não seguiu. Parabéns pela Maravilha!!!! Abraço!"

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  4. De Júlia Carrolo recebemos o seguinte comentário:
    "Lindo.Gostei muito.A realidade feita poesia.Um grande beijinho."

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  5. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    " Num bosque onde todas as flores reinam e de onde floresce a mais bela das belas, a "MULHER". Um texto que nos emociona pela sensibilidade e mestria de historiador. Qual poeta que se diz, o faria melhor? Ser "MULHER", não é quem quer, mas quem pode. Parabéns Albertina e a todas as MULHERES."

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  6. Li,reli e voltei a ler.É um texto extraordinário pela beleza estética, pela riqueza literária e pela tão alta dignidade com tratas um tema que te é absolutamente intrínseco.
    Sinto enorme orgulho de ser companheiro de uma MULHER assim.

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  7. De Celeste Heleno recebemos o seguinte comentário:
    "Obrigada Amiga pela flor, e por ter postado tão belo poema! Beijinho."

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