domingo, 22 de janeiro de 2017

Alabastro


© Vitor Sousa


Opaco, persistente, frágil, compulsivo no descrédito dos valores mundanos, o João soava a Alabastro.
Nascido para carregar penitências, era a personificação das noites revoltas, da febre, das maleitas e de um vómito cáustico oriundo de um qualquer manifesto de repúdio aos deuses ou às contrariedades de bom comportamento.
Opaco,persistente, frágil, o João soava a Alabastro
O seu universo tinha de ser retocado, amarfanhado e reinventado por ele, como se ele fosse o princípio e o fim de todas as coisas na plenitude desordenada do instinto.
A perspectiva da observância era antagónica na captação pictórica do mundo, sempre pautada pelo confronto às verdades absolutas e à força absurda das razões que enjaulam os caminhos.
Era um artesão da alma.
A vista da imensidão, ou a mão pousada no sossego da muralha castelã imprimiam um derrube do temporal, onde todo o rasto histórico é agora. A relação com o outro era fácil, espontânea, afável e curta.
A vivência humana na sua complexidade, imprimia-lhe sempre uma impressão de transacção comercial submersa movida por vómicas cumplicidades sarapintadas a custo por retalhos necrófagos de aparência isenta e sadia.
Até a caridade, supostamente nobre e altruísta era castrada pela contrapartida do amanhã desconhecido, pelo dilema medonho de fazer o bem para garantir o bem-estar sem vir a precisar do pão alheio ou de estender a mão à vergonha do pedir.
Valiam-lhe os bichos, para lhe nortear as contendas e harmonizar a existência.

No velho quintal rectangular, a capoeira brindava-o no esplendor da solidão com o deleite de conversas infindas, arquitectando estórias brindadas de certezas de irreal.
As galinhas arrumadas entre uma rede fina e o muro grotesco de granito escuro bordado a “conchilros” verdes, tinham um badalar sonoro de balbucio mimico, como um diálogo imaginário que lhe tocava o âmago.
Algumas chamavam-no pelo nome e outras tossiam afectuosamente num cacarejar quase mudo.
 Pequenos segredos de vivências raras que Alabastro nunca contou a ninguém.
Do outro lado do muro do quintal, morava a “Senhorinha”, mulher pequena, cabeça enfeitada de um lenço preto só pousado com as pontas revoltas sobre um cabelo preto com núpcias de grisalho.
Astuta, afoita, mulher de muitas sortes, exímia no fumeiro e em noites de borralho relampada em frente ao lume num escano de castanho escurecido do tempo.
De dia, era o talho. Um balcão corrido encabeçado por um cepo de castanho marcado por milhares de cortes infligidos a cutelo com a sapiência do horror do desmembre.
Por trás, a parede tinha uma barra de ferro chumbada com uns ganchos retorcidos e sebosos onde jaziam os cadáveres da beleza arquitectónica do paladar.
Quando rangia a porta do quintal, lá pelo meio da tarde, esgueirado atrás do muro, Alabastro, na quietude da curiosidade, espreitava por um buraco no muro feito a preceito, bem à altura do olho, os rituais da Senhorinha. Olhava de soslaio, levantava a saia, punha a nu a intimidade polvilhada de um manto negro magnético emoldurado por duas coxas roliças, e mesmo ali em frente a um amontoado de couves-galegas, urinava de pé num deleite suspirado, deixando entrever uma espuma amarelada de cheiro acre mesclado de erva-doce.
Três ovelhas atadas a uma velha oliveira aguardavam pacientes com balir submisso o massacre para o repasto dos prazeres da mesa.
Augusto, o enteado, rapaz dos seus catorze, tinha a tarefa de as levar ao matadouro por pequenas ruelas de muros de granito tosco, esculpidos de magia e de engenho da sustentabilidade.
Por vezes o Alabastro ia com ele, era penoso, os animais sentiam o destino e recusavam o caminho, só a golpe de bastão e de arrasto o Augusto conseguia o seu fim.
O prémio da façanha era como uma iniciação a um ritual estranho forjado pela aceitação incondicional do acto.
A negação era impensável, era como um sacrifício tribal que consistia em comer os rabos das ovelhas assados torrados de lã queimada numa pequena fogueira improvisada no quintal.
 Sabor intenso, azedo, os dentes ficavam pretos, comia-se com asco frenético movido de força estranha, talvez pela crença solidária de embelezar o desterro do Augusto.
Alabastro também tinha as suas pequenas felicidades na exaltação solitária do sonho. Tinha fantasmas vestidos de cores fortes, ogres, ninfas, princesas mouras e uma ternura imensurável por uma formiguinha passante, ou um rato sobrevivente às vassouradas da mãe. A cozinha era gigante e sombria, lá no fundo crepitava quase sempre o lume sob as panelas de ferro. À entrada havia um mosqueiro que albergava quase tudo, desde o pote de banha de porco até ao luxo do fim do mês, um esplêndido cacho de bananas para saborear lentamente com o olhar e comer com o método cadenciado, quase religioso facultado pela mão do pai. O fogão, o último da saga aquisitiva era branco, os puxadores cromados de um lustro irrepreensível cintilavam como estrelas num antro escuro de penumbras múltiplas.
Nesse dia, o pai, contemplativo da peça, mas carregado de nuvens de desconforto, vociferou alto e bom som para audição geral, com o assombro que o momento impõe:
- Cuidado com a botija de gaz, isto pode ir tudo pelos ares…
O Alabastro, no seu canto, com a presença habitual de quem não está, fechou os olhos e deixou-se levar pelos ares… Nessa noite o céu era azul, como se fosse verão, Alabastro empoleirou-se no muro do quintal, agarrou com firmeza o poste que segurava a lâmpada que luzia o canelho e voou sobre a imensidão do nordeste transmontano. Não muito longe, depois da descida do ribeiro emoldurado de olmos esguios cheio de pios e cantares, rumou ao sol. Os lameiros sucediam-se, circundados de muros e arbustos farfalhudos povoados de ninhos, o Sr. Alfredo, mais abaixo, sulcava a terra com brados e o afoite da sua junta de bois.
- Bom dia Sr. Alfredo, como está? O homem, meio estonteado nem sabia de onde vinha o cumprimento até levantar a cabeça, e ao vê-lo perguntou surpreso:
- Olá Alabastro, que fazes aí em cima?
- Olhe, ando pelos ares, é tudo mais bonito visto daqui, até vi uma raposa a beber água no ribeiro.
- Então e agora, para onde vais?
- Vou dar mais umas voltas por aí, há muita passarada que não conheço…
- Pronto, vai lá, mas tem cuidado, agarra-te bem ao poste com essas manicas de aranha. Vagueou toda a noite até de madrugada, e sem largar o poste, voltou a pousar sem dificuldade o quintal, já de luz apagada, mesmo ao lado da Senhorinha. Quando acordou já a mãe desafiava os cavacos na lareira para mais um dia de guerra aberta com a vida.


Vitor Sousa ©2017,Aveiro,Portugal

2 comentários:

  1. Duro, o Alabastro, mas dá gosto vê-lo, assim, pelas palavras do autor.

    ResponderEliminar
  2. Rocha branca, translúcida, semelhante ao mármore, porém menos resistente do que ele, e muito usada em trabalhos de escultura – assim é o Alabastro. Capaz de sonho, de voos inesperados e de regressos à dura realidade. Um texto que li com a urgência de chegar ao fim e que voltei a reler para degustar as palavras e saborear os meandros da vida. Gostei muito, Vitor.

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...